14.3.06

Primeiro poema lido por António Ferreira no lançamento do seu livro "Por Negras Veredas, na Luz dos Caminhos" (Quasi) hoje na Casa Fernando Pessoa

trouxe o saco das compras consigo, meteu nele os sumos, as bolachas, as fotocópias, viera da lavandaria, a fazer horas, um filme parecia-lhe bem, embora o cheiro a suor a arrepiasse. bizarrias, umas mamas descaídas espreitam-na da tela, mal o arrumador a deixou entregue ao escuro. ressonava-se umas filas adiante, havia gente que se levantava, trocando de lugar, como nos passos duma dança. na tela, alguém espreitava por uma janela, mas não há nunca jardins nos filmes porno, apenas sexos murchos, coitos de amadores, corpos gastos, quase reles. precisava da música, a gelatina barata que liga os gestos simples, os instantes d'oiro que não cabiam ali. pedimos sempre aos filmes que nos mintam, que nos espelhem em sorrisos, quando nada parece luzir à nossa volta. depois, no escuro, uns olhos túmidos, animalescos, pareciam chamá-la, quando um joelho a tocou numa ligeira descarga nervosa, a mão ágil e fria, como uma rã, lhe levantava a saia. era um corpo sólido, escorrendo suor do bigode, rasgando a violência onírica das imagens que corriam no ecrã sujo para lhe sussurrar palavras numa língua asiática, no vazio da plateia, cruzada por uma tosse senil, pelos gemidos de masturbações, pelos flashes das lanternas, por uma aura de absurda e efémera felicidade. Bovary na Estefânia