23.11.06

Reflexão sobre o fazer poético












por THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
na Folha de S. Paulo, 21 Nov. 06

É comum considerarmos poético todo e qualquer conteúdo de teor subjetivo. Será que, para fazer poesia, basta sentir e escrever o que se sente? Os poetas modernos, que, muitas vezes, se debruçaram sobre o fazer poético, não raro transformando-o em assunto de poesia, dariam a essa questão uma resposta negativa. Fernando Pessoa, na célebre "Autopsicografia", afirma: "O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente". À primeira vista, os versos do poeta parecem uma armadilha semântica: como alguém finge que é dor uma dor que realmente sente? Se o sentimento é verdadeiro, por que fingi-lo? Aí está a chave para compreender por que nem sempre aquele sentimento posto no papel num momento de emoção resulta em poesia.
O fingimento de Pessoa é a elaboração. Em outro poema, diz ele: "Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação". Existe um dado racional na construção do poema para que seja transmitida ao leitor a emoção sentida pelo poeta. Ler os sentimentos de alguém postos no papel pode não nos conduzir a um estado de sensibilidade apesar de toda a sinceridade do escritor. O segredo está em despertar no leitor uma emoção semelhante àquela sentida pelo poeta. Manuel Bandeira costumava "desentranhar" poesias dos jornais. Transformava em poesia aquilo que poderia ser lido como mais um fato corriqueiro. O grande exemplo está no conhecido "Poema Tirado de uma Notícia de Jornal" ("João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número/ Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.").
A percepção do poético dá-se pelo foco num personagem anódino, sem expressão na sociedade. Trata-se de uma pessoa humilde, sem um sobrenome que identifique a sua origem, sem local de trabalho fixo, sem endereço. Depreende-se do apelido e da seqüência de ações ser uma pessoa alegre e querida em seu meio. O destino trágico, que parece ter coroado um ritual dionisíaco, aponta para o caráter dramático da história, mas, no discurso jornalístico, a narrativa reduz-se à simples informação.
Ao retirar do jornal essa história e depurá-la, reduzindo-a aos seus elementos essenciais, Bandeira põe diante do leitor não mais um texto de objetivo informativo, mas um texto de conteúdo reflexivo. Nesse momento, atinge a poeticidade.