15.12.06

Ainda Cesariny















JOÃO PEREIRA COUTINHO

Mário Cesariny, 1923-2006
Folha de S. Paulo, 29 Nov. 06

Era a expressão poética de que a criação artística habita um espaço intocado e intocável pela opressão UNS DIAS, em conversa com um poeta brasileiro (e colunista desta Folha), dizia-me ele que era necessário entrevistar Mário Cesariny. Para que o Brasil conhecesse melhor o poeta português antes que fosse tarde.
Agora é tarde. Cesariny morreu em Lisboa no passado domingo. Tinha 83 anos, e, se me permitem, Portugal perdeu o seu maior poeta.
Não pretendo entrar em polêmicas e, além disso, não pretendo convencer ninguém. Uma opinião é uma opinião é uma opinião. E Pessoa é Pessoa (um caso à parte, que não esqueço nem ignoro).
Mas Mário Cesariny era um milagre. Se lerem os obituários do momento, encontrarão as informações oficiais: o homem que, depois do encontro em Paris com André Breton, lançaria em 1947 o movimento surrealista português, embora seja mais correto falar em movimento surrealista lisboeta, porque o fenômeno (tal como o modernismo de Pessoa, e à diferença do que se passou com os modernismos brasileiros) foi sobretudo um fenômeno da capital.
Acontece que Cesariny era mais do que um surrealista: era a expressão poética e pessoal de que a criação artística (na poesia, primeiro; na pintura, depois; no ensaio, na tradução, no teatro, sempre; e na vida, sobretudo) habita um espaço intocado e intocável pelas patas da opressão. A opressão do Estado Novo, que o censurava e até humilhava, atendendo à sua condição homossexual. A opressão das esquerdas, que, ancoradas na ortodoxia neo-realista, sempre condenaram os desvios heterodoxos do "(sur)real cotidiano" de Cesariny. E a "opressão silenciosa" da democracia, que praticamente o enxotou dos círculos oficiais.
Nada disso apaga o essencial. E o essencial, na hora da morte, é a liberdade absoluta de um gênio absoluto, que soube elevar a existência humana mais concreta a uma linguagem plena de ironia e encantamento. Ou, como o próprio dirá no livro "Pena Capital" (1957) e no poema "Autobiografia":

[...]
Eu sou, no sentido mais enérgico da
palavra
Uma carruagem de propulsão por
hálito
os amigos que tive as mulheres que
assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada
aos lobos
lapidar e seca
[...]
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco
anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O
Magnífico na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que
não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de
manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato
grande!


Imagem retirada daqui.